Apesar da aparente influência "kafkiana" no título desta postagem, meu relato não tem nada a ver com o texto do meu escritor judeu favorito. Embora, por muitos anos tenha alimentado o mesmo tipo de sentimento que inspirou a obra homônima ao título dessa matéria.
A princípio, este texto pode parecer mais um "Daniel X. Begins", mas não há como falar de meu pai, sem contar um pouco de minha história.
Minha mãe, Maria Helena silva, aos 29 anos engravidou de seu namorado, que por sua vez teve a honrada atitude de não assumir a paternidade.
Vivendo em meio à uma família da qual prevalecia a cultura machista, Maria Helena foi expulsa de casa, para não desonrar o "clã" com uma mãe solteira.
Numa época onde ainda não existia Lei Maria da Penha, e não podendo contar nem ao menos com uma pensão alimentícia, sua única saída foi vir a trabalhar em casas de família como empregada doméstica, e morando de favor nessas casas.
Então, não
sei bem quando, ela conheceu Arlindo, um servente de pedreiro, e passou a morar com o mesmo.
Arlindo disse que gostava de Maria Helena, e que não se importava pelo fato de ela estar grávida, que assumiria a paternidade e registraria o filho em seu nome.
Mas isso não trouxe uma "redenção" à minha mãe por parte de sua família. Além de continuar carregando o estigma de "mãe solteira", passou a ser segregada ainda mais na família, por ter se casado com um homem negro. Boa parte da família de minha mãe nunca gostou de pessoas de etnia negra.
Sendo trabalhador do serviço braçal, meu pai sempre teve muita dificuldade em cuidar da família, mas nunca poupou esforços em fazê-lo. Inclusive, uma das coisas que mais me lembro, é do fato de que, mesmo cansado, ia me buscar de bicicleta na escola, após seu horário de serviço.
Outras, após ficarem sabendo que foram adotadas, abandonam aqueles que os criaram e saem numa saga em busca de seus genitores. No meu caso, nunca tive interesse de saber nada a respeito de meu genitor, pois, o papel de Pai já havia sido preenchido desde o começo.
Sempre que possível, meu pai nos levava para viajar em excursões, em parques de diversões, e ao cinema. Foi a partir dele é que adquiri meu amor à sétima arte e também à música...
...
Dica de filme para o dia dos pais:
Peixe Grande
Ed Bloom (Albert Finney) é um grande contador de histórias. Quando jovem Ed saiu de sua pequena cidade-natal, no Alabama, para realizar uma volta ao mundo. A diversão predileta de Ed, já velho, é contar sobre as aventuras que viveu neste período, mesclando realidade com fantasia. As histórias fascinam todos que as ouvem, com exceção de Will (Billy Crudup), filho de Ed. Até que Sandra (Jessica Lange), mãe de Will, tenta aproximar pai e filho, o que faz com que Ed enfim tenha que separar a ficção da realidade de suas histórias.
Magnólia
A história se desenvolve nos arredores da rua Magnólia, acompanhando um dia na vida de nove personagens, que moram na mesma área e cujas histórias se cruzam por coincidências do destino. Entre eles, Frank T.J. Mackey (Tom Cruise), que cresceu odiando Earl, seu pai, e agora dá um seminário para solteiros, onde ensina técnicas para seduzir uma mulher. O motivo da raiva de Frank é que Earl abandonou sua primeira esposa, e mãe de Frank, após vinte e três anos de casados, quando esta estava com câncer, e deixou Frank com apenas quatorze anos para cuidar da mãe até a morte dela. Desta época em diante os dois nunca mais se falaram. Earl tem um enfermeiro particular, Phil Parma, que tenta localizar Frank de qualquer jeito para avisar que seu pai está morrendo.
...
O primeiro esporte que pratiquei, Taekwondo, também foi incentivado por meu pai. Nessa época, era muito franzino e tinha constantes crises de asma. Esse esporte me ajudou a controlar a doença e também melhorar minha autoestima, pois, além de quase chegar à faixa preta, fui vice-campeão mineiro na minha categoria.
Outra grande herança cultural que meu pai me deixou foi sua antipatia ao futebola...
Infelizmente, meu pai também tinha outro passatempo, que, com o tempo se tornou excessivo: o consumo de bebidas alcoólicas.
O ato de consumir uma grande quantidade de álcool em um curto período de tempo, passou a ser cada vez mais constante. Nos meados dos anos 90, o alcoolismo foi tornando meu pai uma pessoa agressiva, passando a ser até mesmo um risco a nossa integridade física.
Decidimos sair de casa e voltar a viver na casa de minha avó. Ou seja, o mesmo lugar onde minha mãe havia sido expulsa quando engravidou...
Depois disso,
existe um hiato, onde passei a não ter mais notícias de meu pai, e confesso que por muito tempo guardei rancor do mesmo.
Nessa época, meu tio, Raimundo, especialista em execução de serviços de terraplenagem, me disse o seguinte: "você quer ir trabalhar comigo? Você fica aqui nessa cidade, não arruma serviço, não estuda. Precisa dar um jeito nessa vida"...
Passei a trabalhar como auxiliar de laboratório em análise de solos para terraplenagem e pavimentação, vindo a morar em algumas cidades, entre elas, Piçarras-SC, onde vim a participar da duplicação da BR 101.
Nessa época conheci muitos homens, que, mesmo com 50, 60 e 70 anos, trabalhavam no serviço braçal, para conseguir sustentar sua família.
Passei a observar e conversar muito com essas pessoas, sobre seus ideais, e sobre a cultura do povo do Sul, e resolvi voltar para Divinópolis ajudar meus pais.
Mesmo morando cada época em uma cidade, retomei meus estudos, dos quais tinha abandonado.
Se passaram 10 anos. Então, chegou ao meu conhecimento que meu pai passara a viver em estado de mendicância.
Foram muitas as visitas que fiz a ele, levando alimentos, dinheiro, mas tudo em vão, pois a presença de seus "amigos de gole" sempre interferia na minha ajuda. Inclusive, vinha a ser ameaçado pelos mesmos quando ia visitá-lo.
Chegou ao ponto de estar vivendo em uma casa abandonada, em condições precárias, e comendo restos de alimentos. Nessa época, todos os seus "amigos de gole" desapareceram.
Divinópolis - 2004
Em 2004, com ajuda do amigo, Anderson Saleme, consegui encaminhar meu pai à instituição católica, Comunidade Sacramento de Amor, em Divinópolis, que conta com uma casa de acolhimento onde recebe pessoas que querem se recuperar de vícios, dependência química ou em situação de abandono, com o objetivo de resgatar sua dignidade.
No começo, minha mãe tinha receito até mesmo em visitá-lo, devido aos traumas gerados pela violência que veio a sofrer .
Um dia, por sugestão de Fabrício de Jesus, missionário da Comunidade, levei meu pai para passar o fim de semana na nossa casa. Deu tudo certo.
Depois que ele havia voltado ao Casa de Apoio, minha mãe disse: "estou com saudades do seu pai"...
A partir dessa hora tive a certeza que ainda era possível reestruturar aquela família que havia sido destruída pelo alcoolismo.
Visita a meu pai no Sítio São Padre Pio, da Comunidade Sacramento de Amor - 2007
Semanas depois, solicitei a liberação de meu pai, e o mesmo passou a viver com minha mãe, na cidade de Divinópolis, onde eu os visitava regularmente.
A partir daí, ele passou a ter uma dieta saudável, praticava exercícios regularmente no grupo Unibiótica (saiba onde praticar) com minha mãe. Passou a fazer as coisas que mais gostava, que eram viajar e assistir os filmes do seu ídolo, Jean Claude Van Damme.
Espírito Santo, nossa primeira viagem com nova família - 2008
Yahoo Family Park
Mateus Leme - 2010
Balneário Camboriú/SC - 2010
Beto Carrero World
Divinópolis - 2011
Devido à demência alcoólica e doença de Alzheimer, meu pai não conseguia se lembrar desses momentos após um dia. Mas sempre lhe mostrávamos as fotos. Mas mesmo que não viesse a se lembrar depois, a felicidade daqueles momentos havia ficado estampada em seu sorriso.
Divinópolis - 2010
Quando era possível, meu pai também ia me ver nas corridas
Rio de janeiro 2012 - Nossa Última Viagem.
Infelizmente, a saúde de meu pai foi se deteriorando rápido. Se tornou diabético, provavelmente devido aos efeitos do álcool no pâncreas. E por mais cuidado que fosse prestado a ele, a cada dia se tornava mais debilitado.
Por muito tempo me questionei (e até cobrei de mim mesmo) por quê não fiz tudo isso antes. Por quê não consegui mudar nossa situação antes?
Mas com o passar do tempo também tomei a consciência que, o Daniel de hoje, não tem o direito de cobrar isso do Daniel de 20 anos atrás. Pois aquele era um garoto cheio de inseguranças, que nem ao menos tinha condições de saber o que fazer. Ele também precisava de ajuda. E esse apoio foi prestado através de amigos e alguns parentes.
Em março deste ano, recebi uma ligação me informando que meu pai havia sofrido um AVE, e estava em estado grave na cidade de Divinópolis.
O acompanhei durante esses dias, até que seu quadro se agravou e ele foi transferido ao CTI do Hospital São
Carlos, em Lagoa da Prata/MG.
Nesse período, alguém me perguntou se eu havia o perdoado "por tudo que fez" a mim e à minha mãe. Respondi que não havia nada a perdoar, apenas a agradecer. Fiz isso em um momento muito íntimo, quando ele já estava no quadro de coma. Agradeci por ter sido para mim, aquilo que outra pessoa não pôde ser. Infelizmente não fiz isso quando ele ainda tinha consciência para entender minha gratidão.
No dia 18 de abril de 2013, recebi uma ligação, informando a notícia de seu falecimento.
Muitas vezes, algumas pessoas se referiam a meu pai como "padrasto". Mas nunca o enxerguei assim. Embora Arlindo não fosse meu genitor, para mim foi um verdadeiro pai, e à sua maneira, me amou como seu verdadeiro filho.
Essa matéria é dedicada a todos os pais, e a todos os filhos que cuidam bem dos seus.
Arlindo Xavier da Silva
★ 25 de julho de 1944
† 18 de abril de 2013
Poema "Pai adotivo", por Nilcéa Almeida.
lindo!sem palavras
ResponderExcluirBela história de vida. Seu pai foi um grande homem e o alcoolismo não tirou isso dele. Nem tirou a chance de você se tornar um homem de bem e vencedor como é. Parabéns a ele e a você também, reagiu como uma pessoa de bem faria e sempre esteve com sua mãe.
ResponderExcluir"Muitas vezes, algumas pessoas se referiam a meu pai como, "padrasto". Mas nunca o enxerguei assim. Embora Arlindo não fosse meu genitor, para mim foi um verdadeiro pai, e à sua maneira, me amou como seu verdadeiro filho."
ResponderExcluirE certamente contribuiu muito para que você se transformasse nesse grande cara que é. Não há reconhecimento maior para um pai. Essa é a maior demonstração de gratidão que existe.
Daniel, estou sem palavras... Que história linda, que bom que vc teve tempo de se reconciliar com ele. Um grande abraço, meu amigo!!!!! Parabéns pela pessoa que vc se transformou. Seu pai com certeza se orgulha disso! Namastê
ResponderExcluirValeria Spakauskas
Bela história!
ResponderExcluirBelo relato. Que pena que ele se foi este ano.
ResponderExcluirPrezado Daniel!
ResponderExcluirA história de superação do seu paí e de sua mãe é um exemplo de vida para muitas pessoas que estão passando pela mesma situação, as diversas dificuldades que você passou e superou que juntando com os diversos filmes que você assistiu e refletiu com certeza foram o estopim para você desenvolver esse perfil de um brilhante revolucionário insatisfeito com as injustiças sociais, principalmente com os menos favorecidos, você tem muito para nos ensinar com essa experiência.
Deixo aqui meus sentimentos pelo falecimento do seu pai, e desejo muita saúde e paz para você e sua mãe.
Um grande abraço!!!
Nossa vizinho....me matou com a faca da cozinha...
ResponderExcluirEu sei bem o que é falar com um pessoa em coma tudo aquilo que a gente queria dizer e não deu, mais vai ter sempre alguma coisa que ficou pra traz...Mesmo dizendo pra ele o quanto eu o amava, parece que faltou um ultimo: eu te amo, um ultimo beijo, um ultimo abraço....
Você fez o que pode, e tenho certeza que, o que não pode por ele, isso é lindo parabéns!!!
Vizinha
A sua história faz parte da minha! Pois acompanhei tudo e sei que você mais do que ninguém tinha todos os motivos para fracassar e passar a vida justificando-se que tudo foi devido as dificuldades encontradas... mas pelo contrário você lutou e fez dos problemas os degraus para o seu sucesso e para honrar seus pais que apesar dos sofrimentos vividos sempre fizeram de tudo para que você fosse feliz! Ao ler o resumo da sua história me caíram lágrimas dos olhos, mas não de tristeza e sim de felicidade por saber que apesar de todas as adversidades você meu AMIGO IRMÃO venceu!! Agora é seguir em frente e ter a certeza do dever cumprido! e escrever novos capítulos na sua história de vida!! mas agora felizes!! pois você merece!!
ResponderExcluirXavier eu já te admirava, mesmo sabendo de longe um pouco da sua história, mas agora que li sua verdadeira história não pude deixar de esconder as lágrimas que encheram meus olhos. Bonita a sua atitude, e mais bonito foi a atitude de seu pai, lá no passado, vir a assumir um filho...... Você é digno de ser chamado de filho e chamá-lo de pai. Te admiro ainda mais, você sabe disso e torço muito por você!!! Um grande abraço. Gilzélia
ResponderExcluirSem comentários.
ResponderExcluirUma linda história.
Parabéns Daniel, mto bonito mesmo a história. Mto foda a parte do "Não tenho o que perdoar, só agradecer", faz as pessoas repensarem sobre suas vidas e inseguranças. Tu é um exemplo de vida e de conquista cara. E quanto a nossa família, realmente o povo lá é mais cabeça dura que uma pedra, mas com o tempo vc percebe que algumas coisas são compreensíveis pela criação que tiveram, outras toleráveis e outras que precisam de reestruturação e mudança como conceitos, vícios, crenças. Mas é preciso tempo e paciencia pra se mudar a persepção de uma pessoa que sempre viu a vida de um certo padrão, dependendo do tempo as vezes nem é possível, tanto pelo costume quanto pela vontade da própria em ter outros pontos de vista. A partir daí, a única coisa q podemos fazer é ter paciência e ir lapidando aos poucos essa montanha..
ResponderExcluirE foi mal a demora ai velho.. o/ abraxx
-Diego
Linda a sua história! Que ela sirva de exemplo aos filhos que tem tanto e fazem muito pouco e ainda reclamam. Deus abençoe você e sua família.
ResponderExcluirDaniel, li e reli, muita emoção foi aflorada... crio meus filhos sozinha e não por opção, simplesmente porque alguém muito egoísta decidiu não ser responsável pelos filhos que geramos... a grande diferença :
ResponderExcluirmeus filhos não conheceram nenhum Arlindo! Um pai faz diferença na vida do filho sim... seja pai de coração ou pai biológico! Fico feliz por você ter a sensibilidade de entender e aceitar seu destino, muita luz para você !
Patrícia/APM
Olá Daniel, História forte a sua, muito bonita, admiro a superação das fases difíceis, muita gente se prende somente aos traumas e aos momentos difíceis deixando apagar o que ficou de bom e você soube valorizar o melhor, afinal todos nós pisamos na bola de vez em quando. Eu também sou pai adotivo de três adolescentes, estamos juntos há dez anos, nos relacionamos bem mas espero que no futuro eles me perdoem também as eventuais mancadas. Abraço!
ResponderExcluirBráulio (Xerife) - CTT
Morte. A palavra, por si só, já carrega um peso. É a única certeza que temos na vida, a de que todos morreremos um dia. Mas é difícil se preparar para perder alguém. Algumas almas elevadas conseguem lidar bem com as perdas, mas acredito que a grande maioria das pessoas não está pronta para ver arrancado de sua vida alguém que ama. A gente sente uma saudade diferente. É uma saudade amarrada pela certeza de que nunca vai passar. É uma saudade que vai ser eterna. A gente apenas se acostuma a conviver com a ausência, mas não esquecemos, não deixamos de sentir falta… as memórias permanecem, o peito aperta em cada lembrança, e só o tempo mesmo para acalmar o coração…
ResponderExcluirShow de bola o texto! Enxerguei um pouco da minha história nela. Queria que meu pai tivesse descoberto o valor da paternidade, o meu valor assim que me conheceu, aos 07 anos de idade. Graças a Deus tive a oportunidade de ser amigo dele e de estar ao seu lado nos momentos mais difíceis antes de sua passagem. "Deus não joga dados".
ResponderExcluirTambém Enxerguei um pouco da minha historia em seu texto,meu pai também faleceu de Alzheimer pelo uso abusivo de bebidas alcoólicas,DANIEL vc é e sempre será um exemplo para sociedade,SEMPRE LEMBRE DISSO!!!!!
ResponderExcluirDaniel, a vida é feita exatamente disso, aprendizado. Muitas vezes também me cobrei por muitas situações, mas naqueles momentos eu não tinha a maturidade que tenho hoje. É nítido nas fotos que você fez o que estava ao seu alcance em cada uma das fases. Tenho certeza de que os meus pais e o seu pai, onde estiverem tem muito orgulho das pessoas que nos tornamos :)
ResponderExcluirPense nisso. Augusta
Baita texto!
ResponderExcluir